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Meu pai? Mataram! Sobreviventes da chacina de Cajazeiras

O contexto é cada vez mais duro para as crianças e adolescentes, nas periferias da Capital

Por Diário do Nordeste

28/04/2018 às 15h33 • atualizado em 29/04/2018 às 11h04

(foto: reprodução/ Diário do Nordeste)

Natanael esperava passageiros para seu Uber. ‘Marrom’ vendia um lanche a Brenda, em frente ao ‘Forró do Gago’, na Comunidade do Barreirão, no bairro Cajazeiras. Tatiane, Edneuza, Marisa, Renata, Raquel, Jefferson, Raimundo, Wesley, Maria, Gilson e Luana estavam próximos ou dentro do estabelecimento, na madrugada de 27 de janeiro. Parecia só mais um dos eventos semanais do clube, mas uma sequência de tiros calou o som mecânico que animava o local. Fortaleza foi se calando aos poucos, ao contar 1, 2, 3, 4, 8, 10, 14 mortos na festa.

O motorista, o vendedor de lanches, as pessoas que se divertiam foram executadas. Todos tombados pela violência. O filho de ‘Marrom’, de 12 anos, que ajudava a atender a clientela, foi ferido e caiu. Fingiu estar morto segurando o pavor, o grito e a dor de saber que o pai não fingia. Poucos metros à frente estava caída Marisa, sua tia materna. Não só a família de ‘Marrom’ foi abatida pela tragédia. A manhã seguinte foi de desalento para as dezenas de pessoas que resolviam as burocracias para a liberação dos corpos dos parentes, preparavam sepultamentos e sentiam a dor pungente de esperar uma resposta. Ainda atordoadas pelo baque, as famílias das vítimas viram o passar das semanas anunciar dias longos e doloridos.

Mesmo tendo a mãe viva, o filho de uma vítima da Chacina das Cajazeiras (identidade preservada), enfrenta dificuldades, porque, sozinha, ela não consegue prover a família de cinco filhos adultos, adolescentes e crianças. Depois da chacina, a família recebeu ajuda de amigos e vizinhos. Segundo o jovem, não houve, sequer, contato de algum órgão público com eles. “Nunca apareceu ninguém para ajudar, nem do Governo, nem da Prefeitura. Só as pessoas mais próximas, que veem a nossa necessidade, nos ajudam. Tentamos uma pensão, pelo menos para o meu irmão mais novo, mas não saiu nada”, afirmou. Receoso, parecendo querer desabafar e, ao mesmo tempo, dizendo que a família não quer que ele fale, encerra a conversa dizendo: “É muito difícil. Eu tenho que aguentar. Só isso, aguentar. Sem carinho, sem companheirismo. Parece que fica cada vez mais difícil”.

Mesmo com os pais vivos, muitas crianças e adolescentes se viram sozinhas ou vivem à revelia das ordens dos pais, que sofrem com medo de perdê-los. Na 5ª Vara da Execução da Infância e Juventude, onde adolescentes acusados de atos infracionais recebem suas sentenças, o reflexo da falta da figura materna ou paterna se mostra a cada nova audiência. A história se repete perante o Juízo: “Tenho pai não”, “meu pai? Mataram”, “ninguém sabe não, foi embora faz tempo”.

A menina de 16 anos, abandonada pelo pai ainda criança, estava morando com o companheiro em uma casa invadida pela facção local Guardiões do Estado (GDE). A Polícia chegou e rendeu os dois. A adolescente, no entanto, diz segura: “Eu sou do Comando Vermelho (CV). Na minha área o CV é que manda”. A mãe confirma. Chora, pede que a menina seja internada em um Centro Educacional, para que não seja morta. A infratora rebate, se dirigindo ao juiz: “Moço, a mãe só quer o meu mal. A mãe de todo mundo quer que os filhos sejam soltos e a mãe quer me ver presa”. Discutem em meio à audiência. A mãe explica ao juiz: “Doutor, eu já sofri demais com essa menina, mas nunca abandonei ela e não vou abandonar. Vou fazer tudo que puder. Se o único jeito de manter ela viva for presa, quero que o senhor mande prender”.

Com dois meses, nos braços da avó, um bebê entra no juizado para conhecer o pai. O jovem, de 18 anos, esperava para ver o processo, que ainda respondia enquanto menor, ser arquivado. Depois que atingiu a maioridade, já foi autuado por homicídio e duas vezes por porte ilegal de arma. A mãe do bebê tem 14 anos. O final do encontro emocionado se deu na sala do juiz, onde a avó entregou a criança para que ele segurasse pela primeira vez. A promessa de que seria um pai responsável, porém, não convenceu a maioria das pessoas no local. Do lado de fora, as outras mães comentavam a situação. Uma das mulheres dispara: “Conheço essa história, como meu menino foi desse jeito. Esse daí não dura um ano. Já tá enrolado demais”.

Esquecidos
Vários adolescentes entram na sala sem os pais. Dão explicações diversas para a ausência. O juiz pergunta a todos onde moram, eles respondem, o magistrado anota na tentativa de entender o loteamento feito pelas facções em Fortaleza. Quando não se situa, pergunta. Os PMs que acompanham os infratores na sala respondem: “O ‘Gueto’ é CV puro, doutor. Fica lá na Barra do Ceará”, “pelo que ele tá dizendo aí, a área dele é bem complicada, porque parte é CV e a outra é GDE”, “você é do Tatumundé? Ave Maria! Doutor, o Tatumundé é um Conjunto habitacional esquecido”.

Como se não houvesse mais Estado, como se não houvesse área sem domínio dos criminosos, os próprios policiais falam das divisões e da guerra, que eles sabem que avança. “Eu vou negar pra que? Estou nas ruas todo dia e vejo o que está acontecendo. O maior problema é esse, recebemos ordens de quem só conhece o problema pelos números. Muitas dessas ordens são completamente fora da realidade”.

Esperança
A última menina que entra para as audiências vem acompanhada da mãe. A mulher é imediatamente reconhecida. Explica que esteve lá outras vezes com o filho mais velho. A equipe lembra do garoto. A mãe cai no choro: “Doutor, meu filho tá desaparecido há quatro meses. Sumiu em dezembro do ano passado. Tô sofrendo tanto”. Silêncio.

O juiz retoma a conversa querendo saber como foi o desaparecimento. “Ele tava em casa, recebeu uma ligação, saiu e não voltou mais. Ele nunca me deu um ligação nesse tempo todo, nada. Sumiu. Vou quase todo dia na Delegacia e eles dizem que estão procurando, mas não tem novidade. Vou no IML também, mas o corpo dele nunca deu entrada lá. Recebi um telefonema anônimo dizendo que a GDE tinha levado ele, mas não sei se é verdade. Um pai de santo disse que vê meu filho vivo. Essa é minha única esperança”. Silêncio.

O magistrado retoma a audiência da garota. Ela enxuga os olhos, limpa as lágrimas. É hora de outro problema. “O processo dela vai ser arquivado”, disse o juiz apontando para a adolescente infratora. Como se fosse a melhor notícia dos últimos tempos, a mãe comemora. “Eu sabia que Deus não tinha me abandonado, eu sabia que ainda ia me ouvir”.

Fonte: Diário do Nordeste - http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/mobile/cadernos/doc/meu-pai-mataram-sobreviventes-da-chacina-de-cajazeiras-1.1930475

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